A partir de 1889, ano do advento da imprensa local em Cantanhede, os jornais começaram a servir de repositório de inúmeras narrativas sobre o culto do povo de Ançã aos seus oragos, bem como sobre os seus desvios e as circunstâncias culturais e socioeconómicas que os enquadravam e moldavam. Em todos estes relatos existiam traços comuns: a afirmação de que aquelas manifestações religiosas eram, já na penúltima década do séc. XIX, tradições ancestrais; a incontrolável obsessão pela busca de motivos para festejar, fossem eles os mais absconsos; a permanente disposição para improvisar, em qualquer lugar, intermináveis sessões de dança, atividade recreativa definida como a principal Senhora da devoção dos ançanenses; as arrevesadas formas de tentar harmonizar o culto do sagrado e a celebração do profano – a menos que fosse a celebração do sagrado e o culto do profano… – que insinuavam fundadas dúvidas quanto à limpidez destes conceitos e à genuinidade das convicções religiosas.
O enorme sucesso do culto aos oragos solenizados em Ançã devia quase tudo à enorme afluência de forasteiros. Todavia, também o comportamento destes legitimava desconfianças quanto ao enraizamento da fé que os fazia convergir para a nobre vila nos dias de gala. Era relatado que grande número deles se destacava, tão-só, pelas exteriorizações de devoção à tradição da caçarola e da bela carniça. E que, com o decorrer dos anos, o afluxo dos romeiros ia diminuído ao mesmo ritmo que diminuía a generosidade dos ançanenses para os presentearem com fartança de tremoços e pinga. Donde se concluía que a secura das gargantas lhes diminuía a devoção.
Devoção que não seria, aliás, o ponto forte da juventude de Ançã. Agindo em contraposição com a prática das virtuosas donzelas da Gândara das beatas – que aos domingos e nas festas, recolhiam piedosamente às capelas e nunca ousavam dançar – em Ançã não faltavam meninas que antes queriam ficar sem ceia a deixar de ir dar a sua voltinha ao pavilhão das danças. Assim, em vez de recolherem às capelas a entoarem lengalengas de Avés, convertiam as ruas e praças em vastos templos de veneração à Senhora Dança, que reverenciavam até à raiz do coração. Um gasómetro, dois ou três rudimentares instrumentos musicais, e aí estavam 100 ou 150 pares a rodopiar até sol alto, sem que os pés descalços se doessem da aspereza da calçada ou as narinas se apoquentassem com as nuvens de poeira.
Contrariando as doutrinas dos teólogos de que a felicidade era no outro mundo – e bem espinhosa de alcançar! – cada um tentava gozar, naquele torrão natal, um pouco do paraíso. Paraíso que infernizava a existência do pároco, torturada por permanentes pesadelos noturnos, povoados de ovelhas suas a esquivarem-se das atravancadas veredas do Bom Pastor e a enveredarem, de muito bom grado, pela companhia dos onzeneiros, brízidas, judeus e enforcados, comodamente embarcados na satânica nau vicentina.
Na verdade – e ao contrário da ideia que, de tudo isto, pode ressumar – a vida dos ançanenses pouco tinha de divertido. E as razões da insuperável ânsia coletiva de folguedo – que muito parecia reduzir a devoção religiosa a mero pretexto – deveremos procurá-las numa vida toda feita de extrema dureza na luta pela sobrevivência, de acumulação de tensões, fracassos, dissensões, doenças, tristezas, frustrações, enfim, de uma miséria económica e de uma pobreza de afetos que hoje nos é impossível imaginar. Por isso, a religiosidade que dava esperança, os folguedos que serviam de catarse e o vinho que afogava as mágoas andavam sempre de mãos dadas nesta indefinível mescla de religiosidade e de paganismo, de piedade e de transgressão, numa permanente e comovente busca de algumas horas de alegria que permitissem varejar para o mundo do esquecimento as agruras da vida que sempre se obstinavam em impetuosamente assomar.