Os Gravetos que aqui deixo são estórias e episódios autênticos, de tempos não muito longínquos, que recolhi junto de quem os viveu ou testemunhou e que, na sua maioria, fui publicando ao longo de anos em jornais e revistas da região. Foram agora compilados em livro, pois a Gândara tem um vasto património espiritual a não perder e há que o divulgar e preservar. Por isso interiorizei esse apelo, ou não fosse eu um gandarês assumido, por nascimento, por devoção, por temperamento, por alma e por tudo o mais que umbilicalmente me liga a estas terras do Senhor. Terras de areia: areias magras e inóspitas, areias amarelecidas, queimadas pelo sol, areias brancas, tal qual as do deserto, areias nuas, sem rasto nem alma!
Assim eram estas terras até ao momento em que a nossa gente conseguiu delas tirar o pão. Trabalho moroso e sem fim, num arrastar de vidas, até atingir uma identidade própria onde se impôs tão vincadamente o seu património imaterial. Falar delas é meu propósito se, com isso, conseguir homenagear as mulheres e os homens que as fizeram brotar, os pais e os avós que correram mundo, os meninos que não tinham um peão para jogar e os pobres que, rezando, pediam esmola por amor de Deus, enquanto os cegos, a cantar, se acompanhavam à viola. E não vou esquecer os santinhos, os santinhos de cada dia, que por cá tomavam conta de cada um, lado a lado com quem adivinhava, esconjurava, enfeitiçava, predestinava, rezava e prantava. Para aqui chegar, assentei num trabalho de recolha directa, não com subtilezas e reservas, mas com pretendido realismo e abertura, porque também é meu este mundo que assim abraço.
Alegro-me quando falo da casa gandaresa, dos palheiros das nossas praias, do seu mar e da pesca artesanal, que ainda nele acontece pela mão do lavrador-pescador, dos moinhos e da gastronomia, onde tão deliciosas são, em Maio, umas favas com molho de carne, como no Verão umas batatas assadas na areia. E não posso esquecer as festas em honra dos santos padroeiros, as matanças e os jantares dos casamentos sempre adoçados, no final, com uma divina aletria e umas papas de abóbora à moda da tia Maria das Pernas Gordas!
Porque de um privilégio se trata, evoco ainda, numa alusão ao chamado património espiritual, tudo quanto me tem sido dado participar, por altura da reposição das mais diversas actividades de cariz popular: os arraiais gandareses, as desfolhadas, as Maias, a queima do Judas, o cantar das Almas Santas e, de entre outras, as romarias do Santo António dos Covões, do S. Tomé de Mira, do Santo Amaro do Picoto e do S. Romão dos cães danados.
Refiro também as feiras e mercados que, semanal e mensalmente, continuam a manter, como outrora, a mesma visibilidade, onde encontramos uma moldura humana tão igual à de outros tempos, fazendo jus àquela que é a expressão viva do nosso passado.
Para conhecer a Gândara, porém, não bastam estes relatos. Há que vir até ela tactear os vestígios do seu passado, assistir à venda dos pés de porco para pagar promessas, participar numa descamisada, fazer um percurso pedonal ou de bicicleta, conhecer a história da plantação da floresta, saber como se faziam os adobes, os madeiramentos e as asnas, conhecer, por dentro e por fora, a tipologia das construções tradicionais e sentir o significado da expressão casa onde caibas, terra quanta vejas. A par de tudo isto, há ainda as pessoas e os arraiais que povoam a minha memória, lado a lado com as tias Marias do Finfas, as tias Marias Mancas, as tias Emílias, as Madrinhas Velhas e todas as outras mulheres que, de luto carregado, aos domingos no mercado da Tocha, cumprem uma penitência para se imporem ao trabalho.
No meu sentir, a partir do momento em que me é dado tomar uma estória, um facto, um relato ou um acontecimento que a este lugar diga respeito, e reportando-os às vidas e circunstâncias de quem por cá vive, cá tem raízes, ou simplesmente por aqui se terá cruzado, considero que estou a honrar estes chãos, mais quem os moirou.
Tudo isto são Gravetos da Gândara, que apeiraram as memórias que aqui deixo, numa altura em que a consciência me lembra quão difíceis são as pegadas na areia!