Pediram-nos para nos debruçarmos sobre a história de Ançã, aliás, na sequência do nosso livro A vila de Ançã e o seu foral manuelino, publicado em 2009, vai quase década e meia.
Nesse olhar, cremos que o primeiro aspecto a considerar é destrinçar o que é história e o que é lenda ou, mais que isso, liberdade poética.
Passando muito leve esta segunda vertente, pois que, de concreto e verdade certa, nada nos traz, incidiremos sobretudo nos aspectos históricos, aqueles que se podem provar à luz dos documentos que nos testemunham o passado desta terra milenar.
Para o primeiro ponto, notaremos a indiciada existência de um poema do século XVIII, de um filho da terra, Damião José Saraiva, magistrado (juiz de fora) e membro da Arcádia Lusitana, a mais importante academia de literatos portugueses do século XVIII (Bocage; Cruz e Silva, Correia Garção…). Na pena de Damião José Saraiva, Ançã teria as suas origens num grupo de monges beneditinos chegados ao local no século VII, aos quais se deveria o próprio nome da terra, Abondanzza, tão maravilhados teriam eles ficado com os recursos da terra – águas abundantes e cristalinas, matas e caça. Damião José Saraiva inventava ainda a existência de um senhor romano em Ançã, um tal Flávio Ermígio, afinal um nome mistura de romano e de visigótico, dando conta dessa liberdade que é própria aos poetas.
Pouco se sabendo deste poeta nascido e falecido em Ançã, mas que fez vida pelo reino, nomeadamente em Setúbal, sempre se poderá aceitar que ele poderá ter sido influenciado pela possível existência de vestígios romanos existentes em Ançã, no seu tempo, e que perdidos ou enterrados, terão vindo à luz a partir do século XIX.
E assim passamos ao domínio da História.
Na verdade, os mais antigos vestígios da presença do homem em Ançã prendem-se com elementos arqueológicos, encontrados sobretudo nas proximidades da Ribeira de Ançã, e que abrangem tempos da Pré-História ao domínio dos romanos. Aliás, segundo os estudiosos, o próprio nome de Ançã remete para um qualquer proprietário local, de nome Antius, cuja villa Antiana, teria dado o nome por que, hoje, nós conhecemos esta freguesia (villa: grande propriedade rural, auto-suficiente, nas mãos de um senhor e trabalhada por homens na sua dependência, tanto escravos como servos).
Mas o Império romano caiu. Outros povos chegaram e estabeleceram-se na Península, inclusive por estas partes da antiga Aeminium.
Então, deparar-nos-emos com as primeiras notícias documentais sobre Ançã, que nos remetem para o tempo de lutas entre cristãos e muçulmanos, com particular destaque para os tempos primevos, coincidentes com os tempos da primeira reconquista de Coimbra (878-987) e, posteriormente, com os tempos da primeira dinastia de reis de Portugal. É precisamente com o seu último rei, D. Fernando, que Ançã foi elevada a vila e feita concelho, ao mesmo tempo que, retirada ao grande concelho de Coimbra se volveria em senhorio da poderosa família dos de Meneses, tão cedo ligada à coroa de Portugal, e por quem passaria aos de Castro, eles também tão intimamente ligados à monarquia portuguesa, como é sabido.
Como mais importante que estas ligações é o facto de o lugar ter sido feiro vila e concelho, deter-nos-emos na sua caracterização e evolução, com referência também aos seus documentos orientadores, como o regimento do mordomado e o foral manuelino.
Percorreremos Ançã ao longo dos séculos: nos seus lugares, na sua população, nas manifestações da fé das suas gentes, nas suas estruturas económicas e administrativas.
Terminaremos com o regresso da vila de Ançã ao poder do rei, ou da rainha – agora da rainha D. Carlota Joaquina – e a sua situação no final do regime senhorial.
Eram novos tempos: do Liberalismo, que trazia também, em si, uma outra ideia sobre a administração do reino. Nela, Ançã não tinha mais lugar como concelho: morreria, como tal, em 31 de Dezembro de 1853, quando foi anexado ao concelho de Cantanhede.
Até hoje. Mas Ançã nem perdeu o seu passado, nem a sua memória, nem, sobretudo, a força e o valor das suas gentes.
Sobre a autora
Maria Alegria Fernandes Marques é Professora Catedrática jubilada da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra.
É autora de várias obras, de temática variada, onde sobressaem as instituições eclesiásticas medievais, mormente os estudos monásticos (último título: Memória de um mosteiro. Lorvão, séculos IX-XII. História de uma comunidade masculina); a história local, com incidência no período medieval (com a publicação de 30 forais), e ainda a biografia, de que destaca D. Matilde, a primeira rainha de Portugal; D. Dulce, a rainha fecunda; As primeiras infantas de Portugal, D. Matilde, D. Teresa, D. Sancha e D. Mafalda.
Tem ainda publicações de temáticas de cronologia mais abrangente, de que destaca Gentes de paz em tempos de guerra. Mortágua, 1721-1810.
Exerceu vários cargos de gestão, de que salienta, por todos, o de Diretora da Faculdade de Letras da U.C.; fez parte de várias comissões universitárias e ministeriais, no âmbito do Ensino Superior.
Foi galardoada com a medalha de mérito cultural da Câmara Municipal de Mira e premiada pela Academia Portuguesa da História.
Foi palestrante em vários Congressos e Universidades estrangeiras (Espanha, França, Chile) e Professora convidada na Universidade de São Paulo, na Universidade Fluminense do Rio de Janeiro, na Universidade de São Luís do Maranhão e na Universidade de Goiânia.
É académica de número da Academia Portuguesa da História.