1. Não são abundantes as memórias corográficas relativas a Cantanhede. Mais longinquamente, podemos evocar para a segunda metade do séc.XVIII o texto de Teodósio de Santa Marta, inserto no Elogio Historico da illustrissima, e excelentíssima casa de Cantanhede-Marialva, publicado em 1751, a que, aliás, Vidal se vai recorrer, e as Memórias paroquiais de 1758, nas quais o cura Manoel de Jesus Maldonado responde, em 29 de Maio, aos itens da “Parte I. O que procura saber da terra”.
É esta escassez de informação uma razão mais para trazer a lume a inédita Breve Descripção da Villa de Cantanhede que nos oferece nos inícios do século XIX uma leitura bem mais segura de Cantanhede, do que a de Santa Marta.
2. Natural do Porto, uma vez licenciado em Direito em 1799, Manuel de Almeida Vidal, o autor desta Breve Descripção, encontrará um emprego, que nos afigura bem adequado à sua personalidade, no Archivo da Camara do Porto, onde se dedica por dois anos a escrever um Compendio Historico-Chronologico e Legislativo das Rendas da mesma Cidade desde huma antiguidade remota.
A primeira invasão francesa leva-o a retirar-se para Cantanhede em Novembro de 1807, onde fixa residência “não só por ser hum local retirado das principais estradas de comunicação”, como também por se lhe “oferecer comodidade de poder viver aqui em socego, e solidão; e longe do turbilhão vertiginoso de sentimentos, em que se agitavão os espíritos dos habitantes de Portugal.”
A inércia do hábito da investigação conjugado com a solidão e retiro que encontrou em Cantanhede, suscitam-lhe a ideia de examinar algumas memorias relativas à vila e mediante a intervenção do Juiz de Fora, aliás o primeiro de Cantanhede, Manoel Jozé Collaço, acha e colige documentos do cartório fazendo apontamentos avulsos sobre o que encontrava de notável.
A nomeação, em Janeiro de 1811, para “Procurador dos Direitos e Regalias do S.or Donatario deste Reguengo”, incentiva-o a prosseguir “com mais esmêro na Collecção das referidas Memorias, por que alem da curiosidade, já o meu zelo, e dever me instigavam a instruir-
me em tudo o que fosse relativo ao meu Ofício de Procurador, para me habilitar a defender os Direitos e Regalias, que devia sustentar”.
Perante a desordem, e confusão dos cartórios, foi fazendo apontamentos á proporção, que as encontrava, coligindo “um copioso número de noticias, a que era todavia preciso dar alguma Ordem”.
Daqui resultou, como o próprio afirma, não “uma Obra regular”, mas “um Depósito, ou Colecção de Memorias, e com um tal ou qual arranjamento, que de algum modo facilita o conhecimento de várias noticias relativas a geografia, história, e Economia Politica deste Districto, e muitas delas até aqui desconhecidas”.
Cedo lhe surgiria a intenção, que viria a concretizar, de escrever vários projectos, “cuja execução será proveitosa á prosperidade, e adiantamento desta Villa, e Districto”, destinados a formar como a 2.ª Parte das Memorias.
De finais de Novembro de 1815 a Agosto de 1821 será o segundo Juiz de Fora de Cantanhede.
O exercício desta função será objecto de auto de residência iniciado no final do mês em que termina as funções.
Interrogadas sobre como “serviu no dito Lugar, se é de bom talento, vida, e costumes, […]”, as setenta e duas testemunhas ouvidas são unânimes nos seus méritos.
Refira-se o depoimnto de Joze Crespeniano da Silveira, proprietário de Cantanhede, que além de partilhar o dito consenso:
“o Ministro Sindicado possuía todas as qualidades que recomendam o Magistrado digno; por ter muita Literatura, muito zelo de Justiça, e fabilidade, e acolhimento com as partes; sendo ao mesmo tempo de uma inflequexibilidade. Louvável na administração da justiça: assim como de uma exação exemplar na arercadação da fazenda Nacional devendo-se as suas virtudes, conhecimentos, e imparcialidade o sossego e repouso que todos gozarão no tempo da sua Judicatura, não havendo uma só pessoa que deixe de confessar estas brilhantes qualidades,
Acrescenta:
“a excepção de João Henriques de Castro desta Vila e Jose da Costa Alves Ribeiro da Cidade de Coimbra; os quais poderão queixar-se do mesmo Ministro Sindicado, por lhes ter feito Barreira”.
E tinha razão, porque em 12 de Setembro, lia-se no início de um dos longos impetuosos libelos apresentado por aquele, contra o juiz, que aliás não desdizia das qualidades deste:
“Manoel Joaquim Juiz de Fóra que foi, seria um homem muito capaz de ser Ministro senão tivesse entranhas infernais; por que não é tolo, não é ignorante, nem é mandrião, o fazer porem do Preto branco, ou do Branco Preto, é para ele insignificantissimo, e é o mais dominado pelas suas paixões que tem o Suplicante conhecido apesar deste grande mal, que tem conhecido em muitos nos dilatados anos da sua vida. […].”
O seu serviço público não se encerra em Cantanhede. Em 9 de Agosto de 1823 é nomeado Juiz de fora de Braga e em 1828 encontramo-lo como desembargador corregedor no Porto.
3. Foi nas circunstâncias acabadas de referir que surgiram as MEMORIAS / Relativas á Villa de Cantanhede, e seo Termo: organizadas na forma / dos Artigos que baixarão com a Ley de 7 de Janeiro de 1792, e sobre os / quaes se mandou, que as Justiças informassem o que entendessem ser / conveniente á execução da Ley de 19 de Julho de 1790. / Escriptas nesta Villa de Cantanhede / por / M.el Joaq.m d’Olivr.ª Almdª Vidal, / começadas a escrever no Anno de 1807 / e continuadas nos an.s de 1808 1809 1810 1811 e 1812 / extrahidas em grande p.te / de Docum.tos Originaes.
Destas Memórias de que daremos a devida notícia, consta uma Breve Descripção da Villa de Cantanhede, texto que, pelo menos na sua versão final, é posterior a Junho de 1815, porquanto o autor refere o arranjo da capela de S.João Baptista ocorrido nesta data.
Desta Breve Descripção, que propomos constituir o objecto da nossa comunicação, abordaremos o conteúdo, tal como o estruturámos para a edição que dela tencionamos fazer, em quatro partes:
I. A Vila de Cantanhede. Localização, povoamento, foral, cabeça de condado
II. Espaço Urbano
III. Edifícios Religiosos
IV. Edifícios Civis
Descrição de quem, pela permanência e exercício de cargos, conheceu a realidade coeva de Cantanhede, por isso mais realista e menos lisonjeira, do que a que, sessenta anos antes, Santa Martha traçava aguarelando Cantanhede como um reflexo da Illustrissima, e Excellentissima Casa de Cantanhede Marialva, casa de que era capelão, e da qual escrevia o encomiástico Elogio, deixando mesmo a dúvida de que conhecesse a vila.
Sobre o autor
Fernando Oudinot Larcher é licenciado em Direito e em História pela Universidade de Lisboa. Doutor pela Universidade Católica de Lovaina, na área da História do Direito. Membro de várias instituições, nomeadamente Presidente da “Comissão Infante D.Henrique, Ordem de Cristo e Expansão” da Sociedade de Geografia de Lisboa, Presidente do Centro Europeu de Estudos de História Constitucional, Diretor do Instituto Histórico da Beira Coa. Investigador do CHAM-Centro de Humanidades – Universidade Nova de Lisboa. Desempenhou funções docentes na Universidade de Lisboa, na Universidade Católica e na Universidade Lusófona. Professor de Direito e de História no Instituto Politécnico de Tomar. Tem organizado vários colóquios no domínio do Direito, História Institucional e Património